domingo, 7 de julho de 2013

Mais um mendigo

A massa d’água o arrastou como se fosse um graveto. Na verdade não diferenciava muito de um. O encardido dos anos nas ruas o deram uma tonalidade marrom, eterna. Os anos de fome o secaram como um arbusto desfolhado, levemente curvado (por vergonha ou à procura de algo no chão que pudesse ser útil), sem nenhum sinal de vida aparente.

Gritos, choro e estrondos. Tudo abafava e voltava à medida que mergulhava e emergia. Num ciclo interminável, apesar de ter se passado pouco mais de dez segundos.
Sentiu uma dor aguda, seu corpo tinha se chocado contra algum pedaço de concreto e seu braço foi decepado. Não iria lhe fazer falta. Quantas vezes aquele braço ficou estendido esperando algum trocado ou pedaço de comida? Braço inútil.

A força da água fez sua perna ser esmagada entre dois carros. Essa poderia fazer falta. Quantas vezes correu assustado a noite de adolescentes que o queria incendiar ou da polícia que distribuía cacetadas gratuitas e dolorosas? Mas hoje, ao ver o mundo d’água descendo a colina de barracos, as malditas pernas falharam e o colocaram naquele esgoto enorme de madeira, lama, móveis, sonhos e corpos, coisa que até então, milagrosamente, o seu ainda apresentava vida. Perna inútil.

Um vergalhão de ferro atravessou-lhe a barriga, esta passou a maior parte dos anos fazendo ruídos de vácuo. Quantos dias não teve nada para digerir? Barriga inútil.

Teve seus olhos perfurados, olhos de enxergar miséria. Olhos inúteis.

Perdeu a consciência. Consciência inútil, por anos sem nome, agora era apenas partes que ninguém faria o favor de juntar.

domingo, 30 de junho de 2013

Seis cores

Ele delirava em seis cores, o espectro formado por cédulas de Reais enfileiradas, cena linda. Tinha verdadeiro fascínio em colecioná-las, aos montes. Na sua cabeça, valia qualquer coisa por dinheiro, até matar e roubar, não o fazia, apenas por medo de ser preso e das represálias que poderia sofrer na prisão.

Inúmeros seus momentos felizes com dinheiro, impossível relatar todos. Certa vez, seus olhos brilharam ao ver enrolada no chão uma nota de cem, correu ao seu encontro, abaixou sem disfarce: cheirou, beijou e guardou bolso, uma multidão acompanhava incrédula a cena tosca.

Não havia nada no mundo que amasse mais. A comida perdia o sabor ao se imaginar sem dinheiro. Ao comer sua mulher, o tesão aumentava infinitamente ao pensar na cama cheia de cédulas e moedas roçando-lhe o corpo. Sonhava com sua morte, o caixão ornamentado com flores feitas por todas as notas que acumulara ao longo da vida, e era assim que pretendia deixar o mundo. Mas se a esposa não realizasse esse seu último desejo?

Começou a prestar mais atenção na mulher. Ela sempre pedia dinheiro: comprar carne, leite, ir ao salão de beleza, mas todas essas coisas chegavam minguadas em casa. A observou por tanto tempo e nessa mesma perspectiva, chegou a uma infeliz constatação: sua esposa era avarenta, o defeito que ele mais odiava e certamente ela não atenderia seu último desejo.

A solução seria se livrar dela, não sabia como. Matá-la o levaria para prisão e não suportava a ideia de outros presos colocarem em risco a integridade do seu cu. A separação levaria junto metade do seu amado dinheiro. A impossibilidade da solução o fez odiá-la, e negar-lhe tudo foi o que sucedeu. Com sorte, ela sumiria de sua vida sem pedir nada. Terminou por passar meses sem tocar, olhar, falar com a sua ladra avarenta.

-Arrumei um emprego, ela disse mais por formalismo do que por necessidade de comunicar nada ao estrupício que tinha como marido. Avançou para cima dela e a beijou, calorosamente, pediu perdão e a fodeu pensando no salário que ela ia receber.

Voltou a amá-la e preparar sozinho seu mausoléu, com todos os seis tons escondidos para a tarefa de descansar eternamente ao lado daquilo que mais amava não dependesse de mais ninguém.

Um sorriso

Aquele sorriso faltava alguns dentes, mas mesmo assim insistia em permanecer naquela face e estava me constrangendo. Contei até dez para não dar um murro destruidor de sorrisos. Mas não o fiz, não por ser uma pessoa pacífica, mas por medo daquele sorriso infeliz persistir e roubar mais ainda a minha alegria.

Tentei fechar os olhos, já era tarde. O som quase silencioso tinha tomado conta de mim e com ele a repulsa: maldito sorriso faltando dente, nojento! Qual seria motivo para tamanha resiliência?

Passei a desejar, conscientemente, uma dor de dente, em algum que sobrou. Qual riso resistiria a uma dor tão específica? Estava convencido que isso seria uma coisa boa e me deliciava ao imaginar aquele sorriso desmoronando em sofrimento.

Acordei do meu devaneio e notei que meu algoz persistia. Cansei de lutar, cheguei ao seu portador e pedi um cigarro. Fui atendido prontamente com um riso rasgado ausente de incisivos. Peguei minha pistola e disparei três vezes, ouvi o baque surdo do corpo ao chegar ao chão, ostentando um belo sorriso, o mais lindo de todos.

Tentei disparar no rosto, mas não havia bala no tambor. Saí, trajando aquele sorriso, dessa vez, cheio de dentes.

Carambolas e jabuticabas

_ Chupa minha boceta! Pedido simples, claro, direto, normal para os casais. Mas esse não era o caso. Causou estranheza no rapaz: ela nunca o tinha sequer deixado passar a mão. O repelia com tapas, tamanha era sua pureza.

Ele desceu, suspendeu sua saia, arrastou sua calcinha para o lado e começou a chupar. Timidamente, nervoso. Definitivamente ele não gostava do cheiro que saia dessa parte dela, tão diferente de seu lábio com gostinho de jabuticaba, ou seu pescoço com sabor de carambola; procurava apenas lamber, sem penetrar a língua. Ele nunca tinha encostado sua boca num xibiu, apesar das atitudes aparentarem ser um entendido de mulheres e seus artifícios.

_ Chupa direito, caralho! _ Desse jeito eu não vou gozar nunca. Novo susto, onde ela aprendeu a falar desse jeito?! E com qual propriedade ela sabia que a chupada não estava convencendo? Tentou enfiar a língua, mas ao sentir o gosto mais profundamente, vomitou.

Ela ajeitou a calcinha, abaixou a saia e saiu sem deferir um último olhar, sem uma palavra de conforto, sem ajudar o rapaz para quem, até então, jurava amor eterno. Sentou em um banco próximo, no qual o rapaz pode ouvir em bom som ela falar a um transeunte: ei, chupa minha boceta.

Noventa

Meu tio morreu, no auge dos seus noventa anos. Não lembrava seu nome, nem seu rosto. Não foi uma morte mirabolante, foi uma morte simples, daquelas que apesar de parecer irônico, a gente se atreve a chamar de bonita: sentou após o café da manhã na sua cadeira desgastada pelo tempo e não mais levantou. E por morrer em horário tão cedo, recebi a notícia ainda sonolento, minha única reação foi virar de lado e dormir de novo. Frieza? Não! Eis a explicação...


Por anos não lembrei que esse meu tio existia; mas parece que não fui o único. Não houve comoção na despedida, não houve casa lotada: alguns sobrinhos, irmãos, a viúva pouco chorosa, uma filha dos muitos, nenhum neto.


Sua morte não me espantou, não me arrancou uma lágrima, sua vida sim... Pode alguém passar tão despercebido?Quais as grandes histórias que ele pode contar? Quais amores furtivos ele viveu? Quais recordações eu levarei desse meu tio? Quais contribuições singelas vão se perpetuar entre seus próximos? Tantas perguntas a uma vida pacata, quase inexistente, apesar do longevidade dos anos, chego a sentença que a sua vida não aconteceu, se arrastou.


Mas até existências apagadas nos fazem levar alguma coisa, e com o senhor meu tio anônimo, tantas vezes esquecido, viverá para sempre em minha memória, levarei a maior de todas as lições.


Vou escrever minha história na história de muita gente. Assim viverei por mais tempo do que minha própria existência. Enfim, obrigado por me ensinar, mesmo que indiretamente, essa grande lição. E apesar de não ter se cansado nessa vida, descanse em paz.